O menino da rua de baixo
Hoje meu pai completa 87 anos. Seus dedos enfraquecidos já não conseguem cortar as unhas das próprias mãos. Uma tarefa agora dificultosa, mas que, de tão simples, o faz ficar tentando por várias vezes, sem sucesso. Mãos grandes, de dedos grossos e firmes, outrora habilidosas para bater o martelo – tanto com a direita como com a esquerda, com a mesma facilidade –, hoje o traem em uma tarefa simples do seu cotidiano. Suas pernas já não suportam mais carregar o peso do corpo, obrigando-o a usar uma cadeira de rodas, mesmo para se locomover dentro da própria casa. A língua trêmula chega a confundir sua fala, exigindo atenção dos que com ele conversam para que o compreendam.
Ah, a conversa! Essa, sim, o tempo não pôde atrapalhar. Aliás, tempo é do que mais precisamos dispor para aproveitar tanta história ainda por ser ouvida. Dono de uma vista invejável, consegue devorar um livro inteiro em um único dia, sem precisar da ajuda dos óculos. E para onde vai tanta leitura? Para dentro de uma memória igualmente invejável e gostosa de se compartilhar. Memória repleta de lembranças que o remetem a um tempo em que as agruras da vida se misturavam ao romantismo e à inocência de uma época que mais parece ter saído de um livro de contos. Um saudosismo que não o deixa esquecer quando, pela primeira vez, correu atrás da aleluia. Um bloco organizado de meninos entre dez e quinze anos, seguido por dois soldados de bicicleta, em um percurso de 10 quilômetros pela cidade, na busca por balas e doces atirados pelos comerciantes, no sábado antes da Páscoa. Fez minha avó chorar ao ver o seu Zezinho, então com cinco anos de idade, um pequeno retardatário muito atrás do grupo. Obviamente, pelo seu pequenino tamanho, não conseguiria acompanhar a “turma”, no entanto, isso não foi motivo para que ele desistisse da empreitada. Por várias vezes, meu pai recitou para nós “O sonho”, poema que ele sempre soube de cor:
“A hora em que as cortinas se fecham lentamente,
a noite vai descendo silenciosamente.
Os olhos cerro e durmo em meu quentinho leito,
sonho por mil mundos passeio satisfeito.
Ainda ontem, bem me lembro, entrei numa cidade,
que cidade linda, pena é não ser verdade.
As ruas todas eram de pão-de-ló, calçadas de rapadura,
as casas e os muros de queijada.
O chocolate andava de carro pelas praças,
eram de açúcar-cande os vidros das vidraças.
Nenhuma chave havia nas portas dos armários,
brincavam peixes rubros nas caldas dos aquários.
A catedral enorme era de goiabada,
com um sino e duas torres, todos de marmelada.
Um chafariz de bolo inglês vertia mel,
Borgonha e malvasia, champanhe e moscatel.
Nas árvores do passeio cresciam bombocados,
Pastéis de nata, figo, passas e queimadas.
Empadas descobertas serviam de canteiros,
por flores tinham dentro camarões inteiros.
Na biblioteca tinha só livros de beiju,
mesas de queijo suíço, cadeiras de sagu.
Chovia cajuada, groselha e capilé,
em lamas de groselha eu escorregava o pé.
E eu comendo sempre, comendo sem parar,
quando a mamãe veio de súbito me acordar.
Vocês façam ideia como fiquei zangado,
tinha um pudim de creme apenas principiado!
Que privilégio tive em ser, por várias manhãs, acordado por ele com sua fala tradicional: “Desperta aos poucos que o sol desponta, tudo se apronta que já é dia. Começa a lida, ninguém vadia. Põem-se os cavalos nas carroças e os bois nos carros e seguem pra roça. Pombos e abelhas voam contentes, brilham as plantas resplandecentes…”.
Uma vida parece pouco para tantas lembranças que, embora sofridas, ainda produzem em seus olhos lágrimas de saudade pela vida que viveu. Trabalhou muito, desde pequeno, entregando roupas que minha avó lavava e passava, juntou ossos para vender, mas brincou muito também e se divertiu da forma como todos daquela época poderiam. Nadou pelado no rio Paraíba, comeu tripas de boi assadas no fogo (que mais pareciam elásticos a lambuzar o seu rosto de gordura quando as comia), jogou bola, roubou laranja, fingiu de louco na escola para não ser expulso, enfim, coisas “normais” de um menino da rua de baixo…
Eu é que sou feliz por Deus me dar hoje o privilégio de poder tomar com ele um bom café com pastel todos os sábados e ainda ouvir suas histórias e lembranças que a idade não conseguiu apagar da memória.
Um grande beijo para você José Lemes, meu pai. Para você também Adélia, minha mãe, sua esposa e companheira por mais de sessenta anos. Juntos, compartilhamos alegrias, risos e devaneios nas nossas manhãs de sábado.
Até o próximo “Pensando Alto”…..